Jon Sobrino *
Adital -
Introdução á publicação de suas Cartas Pastorais e Discursos no XXVII aniversário de seu martírio
"A palavra fica", disse Monsenhor Romero e, certamente, a palavra ficou através de suas homilias em forma de profecia e eu-aggelion. Um experto em Antigo Testamento nos disse pouco depois do assassinato de Mons. Romero que em Israel houve uns oito grandes profetas e que em nossos dias Monsenhor seria um deles. Em El Salvador, todo mundo sabe disso. E também sabe que Monsenhor foi homem de eu-aggelion, de boas notícias, compaixão e justiça para pobres e vítimas, como Jesus. Monsenhor, de fato, amou seu povo e ninguém recorda a alguém que não tenha amado mais do que ele. Isso é o que ele colocava em forma de palavra todos os domingos.
Porém, a palavra foi também uma palavra lúcida. Sem ser teólogo profissional, pensou as coisas a fundo. E foi uma palavra pastoral e criativa, pronunciada na história concreta para rechaçar concretos caminhos do mal e animar e percorrer concretos caminhos do bem. Foi, portanto, de maneira exímia, "mestre e pedagogo".
Isso é o que aparece com clareza nas cartas pastorais que publicamos nesse Caderno do Centro Monsenhor Romero. Pensamos que a temática fundamental de seu magistério, em síntese, foi a seguinte: a Igreja e sua relação salvadora com o povo, tomando absolutamente a sério a realidade histórica daqueles anos.
Indícios disso são observados em sua primeira carta, "A Igreja da Páscoa", 10 de abril de 1977, com a qual se apresentou ao seu povo, quando já havia começado a repressão e já havia sido assassinado o Pe. Rutilio Grande. Em sua segunda carta, "A Igreja corpo de Cristo na história", de 6 de agosto de 1977, e no discurso de Lovaina, "A dimensão política da fé desde a opção pelos pobres", de 2 de fevereiro de 1980, desenvolve os grandes princípios teológicos para compreender o ser e fazer da Igreja. A Igreja é o corpo de Cristo na história, servidora do Reino e de Deus, anunciando aos pobres a boa notícia e trabalhando por sua libertação. E -o que ocorre com menos freqüência- desmascarando os ídolos de morte e lutando contra eles. E sempre disposta, por amor ao povo e em fidelidade a Deus, a sofrer a perseguição, a verificação mais clara do seguimento de Jesus.
Isto aparece com toda claridade em suas duas últimas cartas pastorais: "Igreja e organizações políticas populares", de 6 de agosto de 1978, e "Missão da Igreja em meio à crise do país", de 6 de agosto de 1979. Nelas, Monsenhor Romero se enfrentou com as idolatrias, causa última de todos os males: o capital e a segurança nacional. E se enfrentou com suas conseqüências: conflito e violência reinantes, repressão ao povo e perseguição à Igreja -e se enfrentou também com o perigo de converter em ídolo as organizações populares. E sempre buscou caminhos de solução. Antes de tudo, a implantação da justiça e, quase no momento da guerra começar, buscou o diálogo nacional.
Nessas cartas, a realidade de um país em chamas e uma esperança que ele sempre manteve tomam a palavra. A partir daí e com o Evangelho na outra mão, buscou sempre o específico da Igreja e o serviço que o Evangelho oferece. Esse olhar à Igreja a partir do serviço ao povo sofredor, o levou a encarná-la no povo crucificado e a analisar a partir dele as novidades que iam surgindo dentro dela: as comunidades de base, a religiosidade popular, os agentes de pastoral, a pastoral de acompanhamento aos cristãos comprometidos politicamente...
Essas duas últimas cartas causaram comoção social. Em El Salvador, foram acolhidas por muitos com grande surpresa e com imensa alegria; como uma luz em meio à escuridão, que dava esperança. Outros as rechaçaram, inclusive vários bispos. No exterior, Monsenhor Romero chegou a ser considerado como verdadeiro mestre.
Nos perguntamos, agora, o que nos diz Mons. Romero, o mestre e pedagogo, trinta anos depois, através desses escritos. Não faltará quem diga que as coisas mudaram, o que é verdade. Porém, continua sendo muito fundamental e muito necessário manter vivo esse legado, sobretudo diante do silêncio atual. Seus textos sobre a Igreja podem continuar a ser lidos com grande proveito. E basta modificar algumas palavras para ler também com proveito seus textos sobre a realidade: o que ele diz sobre ídolos e vítimas, sobre necessidade de justiça e de verdade, sobre honradez e esperança.
Também é importante para nossos dias o modo de proceder desse mestre e pedagogo, no que queremos nos concentrar.
1. Em seus escritos, Mons. Romero deixou-se guiar, antes de tudo, pelo Evangelho. Não citava textos numerosos, mas fundamentais; e estes não aparecem como acompanhantes decorativos, mas como fundamentos reais do ser e da ação da Igreja: prosseguidora da obra de Jesus, do anúncio da fé em seu Pai Deus e da encarnação no mundo concreto dos pobres. Por ser esse seu fundamento, Monsenhor Romero estava convencido de que sua palavra tinha força. "A palavra de Deus não está aprisionada", dizia -e sua grande contribuição foi não deixá-la esmorecer, nem manipulá-la. Para ele, o Jesus do Evangelho apareceu-lhe nos pobres. Agradeceu infinitamente e nunca lhe passou pela mente, mesmo em meio a todos os problemas que isso produziu, dizer como o grande inquisidor: "Senhor, não voltes".
2. Monsenhor usou freqüentemente o magistério da Igreja, especialmente o Vaticano II, as encíclicas sociais de Paulo VI -mais a Evangelii Nuntiandi- e Medellín e Puebla. O fez sem nenhuma rotina, mas com audácia, criatividade e compromisso. Com audácia, pois citava passagens sobre temas que em nosso país geravam grande conflito: direito á organização popular, violência, sua legitimidade e ilegitimidade, diálogo -nesse caso, com grupos marxistas-, assassinatos e martírio, a hipoteca social da propriedade privada... Com criatividade, pois a realidade concreta salvadorenha escapava muitas vezes à realidade universal que o magistério abordava. A pastoral de acompanhamento, por exemplo, foi algo verdadeiramente novo. E com compromisso. Naqueles dias, falar de "magistério", "doutrina social da igreja", era linguagem terrível para os opressores. Por isso, quando em Roma -no processo de beatificação- investigaram se Monsenhor se deixava guiar pela doutrina social da Igreja, e não por ideologias perigosas, a resposta foi clara: evidentemente. Porém, se encontraram com estas palavras de Monsenhor: "É muito fácil falar de doutrina social. O difícil é colocá-la em prática. Então, vêm os ataques e a perseguição". As maiorias, sim, entendiam que essa doutrina social, apesar de não conseguir entendê-la totalmente, devia ser algo bom, e algo que estava a seu favor, pois Monsenhor a invocava.
3. Monsenhor levou muito a sério, analogamente, o que podemos chamar de "magistério da Igreja local". Concretamente, recordava a Segunda Semana Pastoral Arquidiocesana, de 1976, e duas mensagens episcopais. Uma, de 5 de março de 1977, na qual denunciavam os atropelos e a repressão a camponeses e a perseguição à Igreja que começava naquele tempo. A outra, no dia 17 de maio, na qual toda a Conferência Episcopal voltava a denunciá-los. Eram os inícios de um magistério salvadorenho, novo, evangélico e popular. Que Monsenhor recordasse esse "magistério salvadorenho" era importante para que suas cartas fossem bem recebidas -a necessária receptio, como se diz tecnicamente.
4. Monsenhor era bem consciente de que a verdade expressada em textos pode ficar em um nível abstrato e, por isso, manipulável, se não fosse concretizado desde e para a situação do país. Por isso, sua constante preocupação foi iluminar os problemas concretos do país e da Igreja, mesmo quando não houvesse resposta para eles nos documentos universais da Igreja. A terceira carta pastoral sobre "As organizações Políticas Populares", considerada universalmente como pioneira nesse campo, agregou um anexo com dados fundamentais sobre a realidade econômica e política e textos da Escritura e da doutrina da Igreja. E acrescentou um questionário. Assim, poderia ser lida com mais interesse e podia ser melhor compreendida.
5. Essa terceira carta pastoral foi um sucesso. Sua redação é um exemplo de trabalho em equipe e de levar absolutamente a sério os leigos. Monsenhor se juntava, regularmente, em cafés da manhã de trabalho com umas quinze pessoas, sacerdotes em pastoral, teólogos, analistas sociais e políticos. Ente todos, aparecia a realidade com todos os seus problemas e possibilidades e era analisada em profundidade, evitando-se a mera repetição de juízos verdadeiros, porém inoperantes. E aparecia também o juízo a partir da palavra de Deus, e a realidade era analisada teologicamente, com o qual a carta pastoral aparecia enraizada na fé cristã e podia defender-se dos inumeráveis ataques da extrema direita. Deve-se recordar que a carta também foi assinada por Monsenhor Rivera Damas, naquele tempo bispo de Santiago de Maria. Os demais membros da Conferência Episcopal e a nunciatura, de diversas formas mostraram seu desagrado e desacordo com essa carta. Sobre o tema das organizações populares publicaram uma breve mensagem, sumamente pobre, que deixava as maiorias populares abandonadas a sua sorte. O escândalo foi grande diante de textos tão diferentes. E mostra que para Monsenhor Romero, escrever uma carta pastoral era tudo, menos algo rotineiro.
6. Sua quarta e última carta expressa esplendidamente outra dimensão do modo de proceder de Monsenhor Romero: compartilhava com seu povo a confecção de seu magistério doutrinário. Antes de escrevê-la, de fato, enviou aos sacerdotes e às comunidades uma longa pesquisa. Nela, perguntava coisas importantes: "Quem é, para você, Jesus Cristo?". "Qual é o maior pecado do país?" "O que você pensa da Conferência Episcopal, do Núncio, de seu Arcebispo?" E levou a sério as respostas. No número sete dessa quarta carta recorda que "todo o povo de Deus participa da função profética de Cristo... guiado pelo sagrado Magistério" (LG 12). O importante e típico dele é que tirou as conseqüências:
"Levando em consideração esse carisma do diálogo e da consulta, quis iniciar essa carta pastoral com uma pesquisa ao querido Presbitério e às comunidades eclesiais de base da Arquidiocese. E, uma vez mais, fiquei admirado da maturidade reflexiva, do espírito evangélico, da criatividade pastoral, da sensibilidade social e política, expressadas nas numerosas respostas que li detidamente. Inclusive, algumas coisas não tão exatas e audácias doutrinais e pastorais serviram de estímulo ao carisma de magistério e discernimento que o Senhor me confiou. Porém, todas as inquietações e sugestões colocadas foram levadas em consideração. Ao agradecer-lhes muito cordialmente, quero repetir meu convite a continuar este diálogo e esta reflexão, da forma como o fiz, com a consciência de minha limitação, ao entregar, no ano passado, minha terceira carta pastoral ‘que chama a todo o Povo de deus a refletir, a partir de suas comunidades eclesiais e em comunhão com seus pastores e com a Igreja universal, sobre estes temas à luz do Evangelho e a partir da autêntica identidade de nossa Igreja’ (n. 17)".
Monsenhor ensinou com autoridade, porém não com exclusividade; ofereceu seu ensinamento com firmeza, porém não como mera imposição formal. Seus escritos são fruto da reflexão sobre os problemas dos pobres e em diálogo com eles. Por isso, se observa também uma evolução em seu magistério. Monsenhor Romero ensinou, porém à medida que ele mesmo ia aprendendo, estudando os novos documentos do magistério, consultando a todos os salvadorenhos de bom coração e deixando-se interpelar pelas angústias, esperanças e lucidez dos pobres. Seu magistério tratou de iluminar os problemas sociais e políticos a partir da especificidade da Igreja, porém, a problemática histórica iluminava em que devia consistir a atuação pastoral da Igreja.
7. Com suas cartas pastorais e discursos, Monsenhor Romero expressou o serviço que a Igreja devia prestar ao país, sem medo á novidade e sem que o fato de não saber tudo a paralizasse. E arriscava. Monsenhor pensava que, assim, a Igreja estava colaborando com todas as forças vivas que queriam a salvação do país. Porém, tinha também a profunda convicção de que a Igreja tinha sua colaboração específica. Porém, não qualquer forma de ser Igreja, mas a Igreja seguidora de Jesus, que recorda a Jesus. Assim o expressou na noite de Natal de 1978:
"A Igreja é predicada a partir dos pobres e não nos envergonharemos nunca de dizer a Igreja dos pobres, porque, entre os pobres Cristo, quis colocar sua cátedra de redenção".
E uma última coisa. Monsenhor escreveu cartas pastorais. Porém, estas, definitivamente, não são tanto epístolas doutrinais, mas cartas a uns amigos. São cartas de carinho ao seu querido povo.
Março, 2007
* Teólogo
Adital -
Introdução á publicação de suas Cartas Pastorais e Discursos no XXVII aniversário de seu martírio
"A palavra fica", disse Monsenhor Romero e, certamente, a palavra ficou através de suas homilias em forma de profecia e eu-aggelion. Um experto em Antigo Testamento nos disse pouco depois do assassinato de Mons. Romero que em Israel houve uns oito grandes profetas e que em nossos dias Monsenhor seria um deles. Em El Salvador, todo mundo sabe disso. E também sabe que Monsenhor foi homem de eu-aggelion, de boas notícias, compaixão e justiça para pobres e vítimas, como Jesus. Monsenhor, de fato, amou seu povo e ninguém recorda a alguém que não tenha amado mais do que ele. Isso é o que ele colocava em forma de palavra todos os domingos.
Porém, a palavra foi também uma palavra lúcida. Sem ser teólogo profissional, pensou as coisas a fundo. E foi uma palavra pastoral e criativa, pronunciada na história concreta para rechaçar concretos caminhos do mal e animar e percorrer concretos caminhos do bem. Foi, portanto, de maneira exímia, "mestre e pedagogo".
Isso é o que aparece com clareza nas cartas pastorais que publicamos nesse Caderno do Centro Monsenhor Romero. Pensamos que a temática fundamental de seu magistério, em síntese, foi a seguinte: a Igreja e sua relação salvadora com o povo, tomando absolutamente a sério a realidade histórica daqueles anos.
Indícios disso são observados em sua primeira carta, "A Igreja da Páscoa", 10 de abril de 1977, com a qual se apresentou ao seu povo, quando já havia começado a repressão e já havia sido assassinado o Pe. Rutilio Grande. Em sua segunda carta, "A Igreja corpo de Cristo na história", de 6 de agosto de 1977, e no discurso de Lovaina, "A dimensão política da fé desde a opção pelos pobres", de 2 de fevereiro de 1980, desenvolve os grandes princípios teológicos para compreender o ser e fazer da Igreja. A Igreja é o corpo de Cristo na história, servidora do Reino e de Deus, anunciando aos pobres a boa notícia e trabalhando por sua libertação. E -o que ocorre com menos freqüência- desmascarando os ídolos de morte e lutando contra eles. E sempre disposta, por amor ao povo e em fidelidade a Deus, a sofrer a perseguição, a verificação mais clara do seguimento de Jesus.
Isto aparece com toda claridade em suas duas últimas cartas pastorais: "Igreja e organizações políticas populares", de 6 de agosto de 1978, e "Missão da Igreja em meio à crise do país", de 6 de agosto de 1979. Nelas, Monsenhor Romero se enfrentou com as idolatrias, causa última de todos os males: o capital e a segurança nacional. E se enfrentou com suas conseqüências: conflito e violência reinantes, repressão ao povo e perseguição à Igreja -e se enfrentou também com o perigo de converter em ídolo as organizações populares. E sempre buscou caminhos de solução. Antes de tudo, a implantação da justiça e, quase no momento da guerra começar, buscou o diálogo nacional.
Nessas cartas, a realidade de um país em chamas e uma esperança que ele sempre manteve tomam a palavra. A partir daí e com o Evangelho na outra mão, buscou sempre o específico da Igreja e o serviço que o Evangelho oferece. Esse olhar à Igreja a partir do serviço ao povo sofredor, o levou a encarná-la no povo crucificado e a analisar a partir dele as novidades que iam surgindo dentro dela: as comunidades de base, a religiosidade popular, os agentes de pastoral, a pastoral de acompanhamento aos cristãos comprometidos politicamente...
Essas duas últimas cartas causaram comoção social. Em El Salvador, foram acolhidas por muitos com grande surpresa e com imensa alegria; como uma luz em meio à escuridão, que dava esperança. Outros as rechaçaram, inclusive vários bispos. No exterior, Monsenhor Romero chegou a ser considerado como verdadeiro mestre.
Nos perguntamos, agora, o que nos diz Mons. Romero, o mestre e pedagogo, trinta anos depois, através desses escritos. Não faltará quem diga que as coisas mudaram, o que é verdade. Porém, continua sendo muito fundamental e muito necessário manter vivo esse legado, sobretudo diante do silêncio atual. Seus textos sobre a Igreja podem continuar a ser lidos com grande proveito. E basta modificar algumas palavras para ler também com proveito seus textos sobre a realidade: o que ele diz sobre ídolos e vítimas, sobre necessidade de justiça e de verdade, sobre honradez e esperança.
Também é importante para nossos dias o modo de proceder desse mestre e pedagogo, no que queremos nos concentrar.
1. Em seus escritos, Mons. Romero deixou-se guiar, antes de tudo, pelo Evangelho. Não citava textos numerosos, mas fundamentais; e estes não aparecem como acompanhantes decorativos, mas como fundamentos reais do ser e da ação da Igreja: prosseguidora da obra de Jesus, do anúncio da fé em seu Pai Deus e da encarnação no mundo concreto dos pobres. Por ser esse seu fundamento, Monsenhor Romero estava convencido de que sua palavra tinha força. "A palavra de Deus não está aprisionada", dizia -e sua grande contribuição foi não deixá-la esmorecer, nem manipulá-la. Para ele, o Jesus do Evangelho apareceu-lhe nos pobres. Agradeceu infinitamente e nunca lhe passou pela mente, mesmo em meio a todos os problemas que isso produziu, dizer como o grande inquisidor: "Senhor, não voltes".
2. Monsenhor usou freqüentemente o magistério da Igreja, especialmente o Vaticano II, as encíclicas sociais de Paulo VI -mais a Evangelii Nuntiandi- e Medellín e Puebla. O fez sem nenhuma rotina, mas com audácia, criatividade e compromisso. Com audácia, pois citava passagens sobre temas que em nosso país geravam grande conflito: direito á organização popular, violência, sua legitimidade e ilegitimidade, diálogo -nesse caso, com grupos marxistas-, assassinatos e martírio, a hipoteca social da propriedade privada... Com criatividade, pois a realidade concreta salvadorenha escapava muitas vezes à realidade universal que o magistério abordava. A pastoral de acompanhamento, por exemplo, foi algo verdadeiramente novo. E com compromisso. Naqueles dias, falar de "magistério", "doutrina social da igreja", era linguagem terrível para os opressores. Por isso, quando em Roma -no processo de beatificação- investigaram se Monsenhor se deixava guiar pela doutrina social da Igreja, e não por ideologias perigosas, a resposta foi clara: evidentemente. Porém, se encontraram com estas palavras de Monsenhor: "É muito fácil falar de doutrina social. O difícil é colocá-la em prática. Então, vêm os ataques e a perseguição". As maiorias, sim, entendiam que essa doutrina social, apesar de não conseguir entendê-la totalmente, devia ser algo bom, e algo que estava a seu favor, pois Monsenhor a invocava.
3. Monsenhor levou muito a sério, analogamente, o que podemos chamar de "magistério da Igreja local". Concretamente, recordava a Segunda Semana Pastoral Arquidiocesana, de 1976, e duas mensagens episcopais. Uma, de 5 de março de 1977, na qual denunciavam os atropelos e a repressão a camponeses e a perseguição à Igreja que começava naquele tempo. A outra, no dia 17 de maio, na qual toda a Conferência Episcopal voltava a denunciá-los. Eram os inícios de um magistério salvadorenho, novo, evangélico e popular. Que Monsenhor recordasse esse "magistério salvadorenho" era importante para que suas cartas fossem bem recebidas -a necessária receptio, como se diz tecnicamente.
4. Monsenhor era bem consciente de que a verdade expressada em textos pode ficar em um nível abstrato e, por isso, manipulável, se não fosse concretizado desde e para a situação do país. Por isso, sua constante preocupação foi iluminar os problemas concretos do país e da Igreja, mesmo quando não houvesse resposta para eles nos documentos universais da Igreja. A terceira carta pastoral sobre "As organizações Políticas Populares", considerada universalmente como pioneira nesse campo, agregou um anexo com dados fundamentais sobre a realidade econômica e política e textos da Escritura e da doutrina da Igreja. E acrescentou um questionário. Assim, poderia ser lida com mais interesse e podia ser melhor compreendida.
5. Essa terceira carta pastoral foi um sucesso. Sua redação é um exemplo de trabalho em equipe e de levar absolutamente a sério os leigos. Monsenhor se juntava, regularmente, em cafés da manhã de trabalho com umas quinze pessoas, sacerdotes em pastoral, teólogos, analistas sociais e políticos. Ente todos, aparecia a realidade com todos os seus problemas e possibilidades e era analisada em profundidade, evitando-se a mera repetição de juízos verdadeiros, porém inoperantes. E aparecia também o juízo a partir da palavra de Deus, e a realidade era analisada teologicamente, com o qual a carta pastoral aparecia enraizada na fé cristã e podia defender-se dos inumeráveis ataques da extrema direita. Deve-se recordar que a carta também foi assinada por Monsenhor Rivera Damas, naquele tempo bispo de Santiago de Maria. Os demais membros da Conferência Episcopal e a nunciatura, de diversas formas mostraram seu desagrado e desacordo com essa carta. Sobre o tema das organizações populares publicaram uma breve mensagem, sumamente pobre, que deixava as maiorias populares abandonadas a sua sorte. O escândalo foi grande diante de textos tão diferentes. E mostra que para Monsenhor Romero, escrever uma carta pastoral era tudo, menos algo rotineiro.
6. Sua quarta e última carta expressa esplendidamente outra dimensão do modo de proceder de Monsenhor Romero: compartilhava com seu povo a confecção de seu magistério doutrinário. Antes de escrevê-la, de fato, enviou aos sacerdotes e às comunidades uma longa pesquisa. Nela, perguntava coisas importantes: "Quem é, para você, Jesus Cristo?". "Qual é o maior pecado do país?" "O que você pensa da Conferência Episcopal, do Núncio, de seu Arcebispo?" E levou a sério as respostas. No número sete dessa quarta carta recorda que "todo o povo de Deus participa da função profética de Cristo... guiado pelo sagrado Magistério" (LG 12). O importante e típico dele é que tirou as conseqüências:
"Levando em consideração esse carisma do diálogo e da consulta, quis iniciar essa carta pastoral com uma pesquisa ao querido Presbitério e às comunidades eclesiais de base da Arquidiocese. E, uma vez mais, fiquei admirado da maturidade reflexiva, do espírito evangélico, da criatividade pastoral, da sensibilidade social e política, expressadas nas numerosas respostas que li detidamente. Inclusive, algumas coisas não tão exatas e audácias doutrinais e pastorais serviram de estímulo ao carisma de magistério e discernimento que o Senhor me confiou. Porém, todas as inquietações e sugestões colocadas foram levadas em consideração. Ao agradecer-lhes muito cordialmente, quero repetir meu convite a continuar este diálogo e esta reflexão, da forma como o fiz, com a consciência de minha limitação, ao entregar, no ano passado, minha terceira carta pastoral ‘que chama a todo o Povo de deus a refletir, a partir de suas comunidades eclesiais e em comunhão com seus pastores e com a Igreja universal, sobre estes temas à luz do Evangelho e a partir da autêntica identidade de nossa Igreja’ (n. 17)".
Monsenhor ensinou com autoridade, porém não com exclusividade; ofereceu seu ensinamento com firmeza, porém não como mera imposição formal. Seus escritos são fruto da reflexão sobre os problemas dos pobres e em diálogo com eles. Por isso, se observa também uma evolução em seu magistério. Monsenhor Romero ensinou, porém à medida que ele mesmo ia aprendendo, estudando os novos documentos do magistério, consultando a todos os salvadorenhos de bom coração e deixando-se interpelar pelas angústias, esperanças e lucidez dos pobres. Seu magistério tratou de iluminar os problemas sociais e políticos a partir da especificidade da Igreja, porém, a problemática histórica iluminava em que devia consistir a atuação pastoral da Igreja.
7. Com suas cartas pastorais e discursos, Monsenhor Romero expressou o serviço que a Igreja devia prestar ao país, sem medo á novidade e sem que o fato de não saber tudo a paralizasse. E arriscava. Monsenhor pensava que, assim, a Igreja estava colaborando com todas as forças vivas que queriam a salvação do país. Porém, tinha também a profunda convicção de que a Igreja tinha sua colaboração específica. Porém, não qualquer forma de ser Igreja, mas a Igreja seguidora de Jesus, que recorda a Jesus. Assim o expressou na noite de Natal de 1978:
"A Igreja é predicada a partir dos pobres e não nos envergonharemos nunca de dizer a Igreja dos pobres, porque, entre os pobres Cristo, quis colocar sua cátedra de redenção".
E uma última coisa. Monsenhor escreveu cartas pastorais. Porém, estas, definitivamente, não são tanto epístolas doutrinais, mas cartas a uns amigos. São cartas de carinho ao seu querido povo.
Março, 2007
* Teólogo
FONTE: ADITAL
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